Por dentro da capital do garimpo ilegal de ouro da Amazônia

Em meio à floresta, a 60 km da cidade mais próxima, o ruído de aviões a hélice decolando e pousando ao longo do dia parece deslocado do entorno amazônico. “Onde há garimpo por aqui, há aeroporto”, comenta Noé Luz, vereador suplente de Jacareacanga, no Pará, município que ostenta o título informal de capital do garimpo ilegal de ouro do Brasil. No coração da região do Tapajós, pistas de pouso, regulares ou não, vem se proliferando, servindo às centenas de lavras que nos últimos anos atraem pessoas de diferentes partes do país para buscar a sorte em meio à lama, o calor e a malária.

“O garimpo não é convidativo, não é Paris”, comenta Virgílio Viana, ex-secretário de meio ambiente do Amazonas e superintendente da Fundação Amazônia Sustentável (FAS). “É insalubre, a pessoa passa por muito perrengue, perigo. É certamente a última opção, mas que apesar do custo humano, tem um benefício individual grande.”

Mais de 80% do território da cidade – que, de tão grande, comportaria uma Holanda – está inserido em terras indígenas ou unidades de conservação, onde a extração de ouro é proibida, segundo parecer de 2014 da Advocacia-Geral da União. No entanto, isso não impede a retirada de 80 kg do minério por semana, segundo estimativas de compradores da cidade. Ouro vindo principalmente de terras da Floresta Nacional do Crepori e das Terras Indígenas (TI) Mundurucu e Sai-Cinza, esta última vizinha ao núcleo urbano do município. Com o ouro cotado ao longo de 2020 em R$ 350 por grama, são mais de R$ 110 milhões que todo o mês deixam a cidade.

Garimpeiro exibe anéis de ouro em Jacareacanga, Pará. Joias como anéis e relógios são itens obrigatórios entre garimpeiros de todo a região. Foto: Gustavo Basso

A pandemia do novo coronavírus e a instabilidade financeira gerada por ela levou ao aumento da busca por investimentos mais seguros. Com isso, o metal atingiu o maior valor na história, batendo U$ 66 por grama em 6 de agosto do ano passado. No Brasil, com o real se desvalorizando conforme o país se firma como vice-campeão no triste ranking da covid-19, o ouro permaneceu cotado acima dos R$ 350 até meados de novembro. Hoje vale oficialmente R$ 307, ou R$ 250 nas casas compradoras de Jacareacanga.

A atração financeira, associada ao movimento na esfera federal de legalização do garimpo em unidades de conservação e o relaxamento da fiscalização ambiental com o enfraquecimento de Ibama e ICMBio, conduziu a região do alto Tapajós a uma corrida do ouro encabeçada pelos novos retirantes. Raros são os moradores da região de Jacareacanga e suas vizinhas Itaituba e Novo Progresso nascidos por lá. Os mais velhos vieram trabalhar com madeira, borracha ou abrindo a rodovia Transamazônica, e acabaram ficando pelo ouro. Os mais novos, chegados nos últimos cinco anos, vêm, na maior parte, dos vizinhos Mato Grosso e Maranhão para trabalhar com o garimpo moderno, equipado com maquinário pesado. “Vem muita gente do Nordeste para trabalhar, enquanto os paulistas vêm investir; são donos de máquinas que atuam, mas não moram por aqui”, conta Alan Carneiro.

Empresário do setor de peças e reparos para escavadeiras e maquinário de garimpo, Carneiro é ele mesmo migrante. Chegou há quatro anos de Rondônia “buscando investir no meu próprio negócio, e Jacareacanga pareceu uma oportunidade, já que mal havia civilização por aqui”. Hoje possui o principal comércio do ramo e atua intensamente na organização de uma cooperativa local e na legalização do garimpo em terras protegidas. “São aproximadamente 2 mli pessoas atuando diretamente dentro de terras indígenas, com 150 máquinas. Se toda essa atividade parar, a cidade para também”, aponta, reconhecendo que grande parte do montante é retirado pelos pariwat, ou não índígenas, na língua mundukuru.

POVO RACHADO

Sentados sobre uma região que pode guardar até mil toneladas de ouro despejado pelos derramamentos de dois dos vulcões mais antigos do planeta, a uma profundidade que varia de 100 metros a 1 km, os Munduruku são hoje uma etnia rachada, em conflito iminente por causa da exploração do minério.

As TI Mundurucu e Sai-Cinza abrigam a maior população de indígenas aldeados do Pará. Ao todo, são 12.772, segundo dados de 2019, ou 30% dos mais de 41 mil habitantes. Formalmente, a principal organização representativa dessa população é a Associação Indígena Pusuru, sediada em uma pequena casa no centro de Jacareacanga. Encabeçada por Francinildo Kabá Munduruku e seu primo, João Kabá Munduruku, a instituição atualmente luta pela liberação da exploração de ouro em suas terras.

“Somos 14 mil, entre os aldeados e os que vivem fora das terras, e a maior parte trabalha com o garimpo”, defende João, criticando as limitações. “O índio tem a terra, mas o governo não deixa extrair o ouro dessa terra, não faz sentido”. Segundo a Constituição Federal, as terras tradicionalmente ocupadas pelos índigenas pertencem à União, e têm o aproveitamento de riquezas minerais sujeito a autorização do Congresso Nacional. Na prática, porém, a extração é proibida porque nunca foi regulamentada – questão que pode ser alterada pelo projeto de lei 191/2020, de autoria conjunta do Ministério do Meio Ambiente, de Ricardo Salles, e do Ministério da Justiça, então sob comando de Sérgio Moro.

Lideranças indígenas contestam as afirmações. Um desses líderes, que prefere não se identificar temendo emboscadas e por já estar sob ameaças, afirma que os índigenas que lutam pela liberação do garimpo foram cooptados pelos pariwat e não representam o povo munduruku. “Eles mentem sobre a maioria ser favorável à extração; na realidade, são 20% os que apoiam a legalização, é uma minoria que participa da política tradicional e que aplicou um golpe sobre a [Associação Indígena] Pusuru”, afirma.

A reportagem teve acesso a uma carta redigida por lideranças munduruku reunidas em assembleia e enviada ao Ministério Pública Federal em 18 de dezembro de 2020. O documento diz que a eleição de Francinildo Kabá para a entidade foi uma manobra com envolvimento de “empresários, deputado estadual e senador que estão envolvidos com as atividades ilegais de garimpagem e a favor da PL 191, se aproveitando de um momento de fraqueza com a morte de grandes lideranças do nosso povo causadas pela pandemia”. A carta afirma ainda que, pela decisão geral dos caciques, a Pusuru não representa mais os mundurukus, sendo substituída pelo Conselho Indígena Munduruku do Alto Tapajós, e devendo permanecer inativa.

Os munduruku têm forte atuação política em Jacareacanga. Atualmente, cinco dos 11 vereadores são indígenas, que contam com tradutor nas sessões parlamentares. Desde a fundação do município, em 1991, todos os vice-prefeitos foram da etnia. Waldelirio Manhuary Munduruku, atual vice-prefeito, é outro defensor da atividade nas terras indígenas. “Temos consciência de que é uma ilegalidade, mas o garimpo é uma necessidade do índio”, disse ele em entrevista à reportagem, comparando a realidade financeira atual com a do passado. “O índio hoje está inserido na sociedade, quer água gelada, TV de última geração, não somos mais tutelados. Os que são contra querem que fiquemos isolados como silvícolas, mas não dá para voltarmos a 1500.”

Diariamente partem de Jacareacanga dezenas de voadeiras e balsas transportando pessoas e produtos para os garimpos na região do entorno – muitos localizados em terras Indígenas. Foto: Gustavo Basso

Procurador da República com atuação na região do Alto Tapajós, Paulo de Tarso Oliveira questiona a liberação do garimpo. “As terras indígenas existem como ferramentas para a manutenção dos modos de vida tradicionais desses povos; se não há mais indígenas vivendo assim, perde a razão de existir”, disse à reportagem. Para ele, o termo garimpo nem deveria mais ser utilizado. “A atividade é tida como pequena, tradicional, mas quando se observa no local, são usadas máquinas enormes, balsas que custam mais de R$ 1 milhão, que causam um impacto muito grande; se passou de atividade artesanal a empresarial organizada, por que não submeter à legislação?”, questiona ele, chamando a atividade atual de mineração de pequena escala.

Usadas em conjunto com as escavadeiras, as balsas carregam potentes bombas hidráulicas que desmancham os barrancos para que a lama seja peneirada e o minério extraído. O processo gera grande quantidade de lama e é acusado de assorear rios e igarapés.

OURO SOB DISPUTA

A pá da escavadeira avaliada em R$ 500 mil levanta uma tonelada de terra a cada 10 segundos, enquanto o operador busca o solo de cascalho, a 30 metros de profundidade, onde se acumula o ouro. Mazio Silva saiu do Maranhão para garimpar nas Guianas e Suriname. Neste último, ele aprendeu, já nove anos, como trabalhar com o equipamento na prática. Nos últimos três, mora e trabalha no garimpo São José, onde apenas o maquinário encobre o som das aeronaves no meio da floresta.

Por Gustavo Basso / National Geographic Brasil

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Rodrigo Rivera